Vocês não são índias!!

25 jan

Depois que virei mãe que me dei conta como esse meio materno é cheio de modismos e códigos próprios.

Ultimamente tenho lido algumas mães se auto intitularem “índias”, por escolherem um parto natural, por utilizarem fraldas de pano, por penduraram um colar de âmbar, por amamentarem, por usarem sling, por fazer cama compartilhada, ou qualquer outra atitude que vá contra a lógica hegemônica de criação e nascimento.

Acho muito bacana várias dessas coisas que as auto intituladas “índias” pregam e fazem. Também tenho consciência que essa auto nomeação é uma resposta a um obstetra fofo que disse que mulher da cidade não consegue parir naturalmente, porque elas não são índias. E não somos mesmo!

É muito importante nos empoderarmos quanto ao nosso corpo, capacidade de fazer nascer e amamentar um bebê, mas isso não nos faz índias. Continuamos sendo mulheres da cidade, com toda assistência pública e privada ao nosso alcance. Nossos bebês tem pleno acesso ao SUS, participamos de fóruns on-line, temos internet em casa e compramos fraldas de pano em lojas virtuais.

É ofensivo vocês se chamarem de índias. Vocês estão generalizando a diversidade da cultura indígena, elas não são todas iguais, não existe “a índia”, cada etnia tem uma riqueza cultural enorme. Vocês demonstram uma total falta de noção sobre a realidade indígena brasileira, romantizando a vida sofrida dessas mulheres, que muitas vezes precisam pedir dinheiro para sobreviver, e que estão longe de ter uma doula, um parto humanizado, ou assistência plena a saúde.
Fui doar as roupinhas do Miguel que não serviam mais para uma moça do Morro dos Cavalos, que sempre está com as crianças no calçadão. Eu não vi seus filhos com fralda de pano, eu não vi colar de âmbar no pescoço de ninguém, eu vi crianças comendo salgadinho e refrigerante porque provavelmente foi o que alguém deu a eles.

É ofensivo quando alguém repleto de privilégios se auto intitula uma minoria.
Por isso parem, apenas parem de se chamar de índias.

Menos dispositivos, mais disposição

9 dez

Mães de primeira viagem, como eu, são alvos fáceis para a indústria de quinquilharias infantil. Nossas inseguranças são gigantes. A cabeça está cheia de dúvidas. Será que vou dar conta? Tenho capacidade de cuidar de uma outra vida além da minha? E se eu falhar, o que será do meu filho?

Para uma cabeça tão inquieta, um armário cheio de aparelhos que prometem ajudar a cuidar da criança é um alívio. Bico de silicone para amamentação, pratinho com sinalização de temperatura do alimento, cadeira que embala, babá eletrônica que filma, DVD que promete deixar a criança mais inteligente, máquina para fazer papinha etc. O “item indispensável” mais chocante que tive conhecimento é uma tornozeleira que monitora os sinais vitais do bebê, e envia mensagem de texto com essas informações. A imagem do bebezinho com essa tornozeleira me lembrou aqueles dispositivos que os presos utilizam, para não escaparem da vigilância policial.

É claro que toda invenção que libere a cuidadora (ou cuidador) de alguma função desgastante é super bem vinda. Por isso acho a máquina de lavar roupa realmente indispensável, bebê suja roupa à beça, e se você for passar o dia esfregando fica difícil cuidar da cria.

Mas até que ponto essas invenções realmente ajudam ou dificultam o contato com a criança? Todos esses aparelhos facilitam o dia-dia da cuidadora ou colocam uma barreira que atrapalha a experimentação do cuidado?

Fui deixando para comprar mais tarde alguns acessórios que achava importantes, como a babá eletrônica, e me dei conta que não precisava dela. Minha casa é pequena, se o filhote acordar e chorar eu escuto, sem dúvidas escuto. Para fazer a papinha me bastou uma panela com revestimento atóxico. Para embalar o bebê eu e meu marido fazemos revezamento de colo. Para medir a temperatura da água do banho e da comida a boa e velha mão dá conta. Para entreter o bebê passamos um tempo brincando com ele, ou levamos para um passeio na rua.

Cuidar, criar, educar é estar presente com o corpo, é estar sensorialmente atento. Para cuidar é preciso tocar, olhar, sentir. Mas se você tem um monte de coisas que fazem isso por você. Uma cadeira que embala, um aparelho que mede constantemente a temperatura e batimentos cardíacos, antevendo qualquer mal estar do bebê, um plástico que é colocado entre a boca do seu filho e seu peito. Tudo isso deixa a experiência de troca entre vocês dois mais pobre, menos direta, pouco intensa. Por isso acho que bugiganga demais mais atrapalha que ajuda. Usar tantos recursos nos impede de aprender a usar as nossas próprias ferramentas para cuidar.

Não há embalo mais gostoso que os braços quentes. Não há bico que torne a amamentação mais fluída que o próprio bico do seio. Não há diversão maior para uma criança que brincar com alguém de verdade, que não seja uma imagem na televisão. Não há medidor de mal estar mais eficiente do que o olhar atento de uma mãe para um filho. Não há nada que facilite mais o cuidado do que estar disposta a aprender a cuidar.

Despreparadas

20 nov

Dia desses, enquanto caminhava para a análise e olhava o celular (comportamento de risco, eu sei!! Andam afanando muitos aparelhos de pessoas distraídas), me deparei com um texto cujo título era “A nossa geração não está preparada para ser mãe”. Fiquei curiosa para saber a qual geração a autora se referia, seria a minha? Quais motivos ela elencava para o nosso despreparo? Qual geração esteve preparada para a maternidade? E afinal, qual é a preparação necessária? Não desgrudei os olhos da tela até terminar a leitura. Já refleti bastante sobre esse tema, muitas sessões de análise foram dedicadas a ele. Até fiz um textinho para o blog sobre a tal preparação.

A primeira frase do texto é “Não sou psicóloga”. Pronto, já bateu o pré-conceito. Sempre que alguém começa justificando que não é psicóloga é porque vai usar algum conceito ou teoria da psicologia, e nesses casos é muito comum rolar uma psicologização rasa da vida, uma coisa que nós psicólogas realmente não gostamos. É comum acharem que tudo se trata apenas de um problema psicológico, individual, “o problema do fulano é que ele tem o psicológico fraco”, ignorando que vivemos em sociedade, possuímos uma história construída com diversas outras pessoas, e que sim, temos problemas individuais, mas eles não são a causa exclusiva de todos os nossos males.

Voltando ao texto, a autora tem dois argumentos principais que sustentam sua reflexão sobre o despreparo das mães na faixa do trinta anos. O primeiro é que as gerações anteriores tinham mais contato com crianças e bebês, e que esse fato tornava as mulheres mais familiarizadas com as questões da maternidade. O segundo é que as mães da nossa geração não foram educadas para serem mães, mas sim para se dedicarem a vida profissional, carreira e trabalho.

Discordo profundamente desses dois argumentos.

É claro que o contato com crianças e bebês facilita os primeiros cuidados com um filho. Acho que o cuidado deve ser compartilhado com outras pessoas, pais, avós, professoras, babás, afinal cuidar 24 horas por dia, 7 dias por semana é muito desgastante. E a mãe que dividir os cuidados com outras pessoas não será menos mãe por isso. Mas saber cuidar, banhar, alimentar, uma criança é saber ser uma mãe? É possível “treinar” ser mãe?

Para mim a maternidade não é algo que possa ser aprendido, ela só pode ser vivida, é a experiência com o filho que torna alguém mãe. Mas não é possível treinar ser mãe com o filho dos outros. Se a maternidade fosse uma questão de conhecimento disponível, hoje estaríamos mais preparadas que nossas mães e avós. Imagina que elas nos criaram sem o oráculo Google. Sem poder consultar os diversos tutoriais, sem participar de fóruns e tirar dúvidas com outras mães de diversas partes do mundo. Hoje também existem os famosos cursinhos para pais e mães, onde os cuidados básicos que antes eram aprendidos na família agora são ensinados por profissionais.

Tornar-se mãe é tão radical, tão único, que não existe conhecimento, técnica, manual, guia, passo-a-passo, que possa ensinar alguém a ser mãe. Cada uma será mãe à sua maneira, e se ficar tentando se ajustar às exigências dos outros provavelmente sofrerá um bocado.

Já no meio do texto que surge o argumento psicológico, que justifica o início “Não sou psicóloga”. A autora fala sobre a diferença entre a nossa geração e as anteriores, argumentando que nossas mães e avós tinham um preparo prático e psicológico NATURAL para serem mães. Foi aí que a psicóloga feminista teve um treco. As gerações anteriores não foram naturalmente transformadas em mães. Elas foram obrigadas a serem mães, fadadas a serem mães, constrangidas a serem mães, e acredito que por terem poucas possibilidades de escolha tentavam levar a maternidade da melhor forma possível, afinal era o que lhes restava. Mas não tenho dúvidas que essa maternidade forçada trouxe muito sofrimento para diversas mulheres. E continua trazendo hoje em dia para aquelas que acabam engravidando sem querer e são obrigadas a se tornarem mães Falar em instinto materno é uma violência contra as mulheres que não querem ser mães. Não existe instinto, existe desejo. E se a mulher não desejar ser mãe ela não deveria ser obrigada.

A autora erra ao achar que as dificuldades que encontramos para sermos mães não existiam em gerações anteriores. Talvez o que não existissem fossem espaços para aquelas mulheres externarem suas angustias, blogs para escreverem, fóruns para desabafarem, e principalmente, talvez a elas não fosse permitido sentir qualquer dificuldade ou medo.

O outro argumento da autora, para justificar o nosso despreparo como mães, é que a educação (das mulheres) está voltada para sermos profissionais e não mães. Fazendo uma análise superficial acredito a educação que recebemos não mudou tanto nos últimos anos, o papel de mãe ainda continua como uma obrigação feminina. Bato novamente na tecla das mulheres que são obrigadas a serem mães. É mulher? Engravidou? Vai ser mãe e pronto. Mesmo que não queira, mesmo que precise largar o trabalho, mesmo que tenha que deixar a vida profissional de lado. Acredito que no ranking das atividades designadas para as mulheres ser mãe ainda esta no topo.

Acho que a única coisa que concordo com a autora é que somos uma geração ansiosa e impaciente. Justamente por essas características queremos manuais e cursos que nos ensinem a sermos mães, bastando apenas escolhermos aquela teoria de criação que mais nos identificamos. Acho que por sermos tão impacientes não nos permitimos errar, falhar, faltar. Queremos que nosso filho nos complete, nos preencha. Mas o que acontece é que ele nos mostra que somos incompletáveis, que sempre haverá um espaço vazio dentro de nós. Tentamos resolver essas angustias participando de todos os grupos de mães, lendo todos os blogs, livros, fazendo cursos, comprando apetrechos (e que infinidade de quinquilharias dizem ser fundamentais para uma boa mãe, tá aí outro texto que quero fazer) enfim, tentando nos prepararmos para o impreparável, para o impossível.

Pré(par)ação, é algo que vem antes da ação.  Mas só se é mãe sendo, agindo, errando, aprendendo, falhando, uma mãe precisa fazer-se mãe. Nossa geração não está menos preparada que as gerações anteriores. Simplesmente porque não há preparação para a transformação radical que a um filho traz. Um filho muda tudo. 

Texto pós-pleito

31 out

Não temos um muro separatista no Brasil como alguns já estão propondo, mas temos uma cortina de fumaça que ofusca o coração de grande parte da população brasileira.
Uma sociedade que demonstrou não conseguir se colocar na posição do outro, que não consegue pensar no que o outro sente e vive.

Não estamos falando de partidos vitoriosos ou derrotados. Estamos falando das milhares de pessoas que ainda passam fome no Brasil e também das outras tantas milhares que agora tem o que comer. Migalhas??? Para quem tem mais que isso certamente o é! Que bom que você não precisa do Bolsa Família, não é mesmo? Esperamos que a médio prazo ninguém mais precise. Mas não esqueça do IPI reduzido do seu carro zero.

Estamos falando da epidemia homofóbica assassina que vem matando quem tem sua sexualidade questionada. Sexualidade essa que está longe de ter sido uma “opção sexual”. E está longe também de ser um problema para você!
O termo “tolerância” já se torna questionável a partir do momento em que se compreende que as pessoas são como são. A diversidade é isso! É preciso aprender a gostar das pessoas como elas são e não apenas tolerar por uma falsa cartilha de ética.

É por falta de empatia que milhares de mulheres morrem todos os anos fazendo abortos clandestinos. Você já se colocou no lugar de alguma delas? Podemos garantir que o aborto é uma das piores coisas que pode acontecer na vida de uma mulher, ainda assim é o último recurso encontrado em meio a uma gravidez indesejada. O aborto causa medo, dor, sofrimento, desespero, prisão em alguns casos e muitas vezes arrependimento. Agora, o mais grave que pode acontecer com essas mulheres é a morte por falta de assistência.

Desça do seu pedestal e perceba o sofrimento de quem está perto de você e de quem está longe também. Ah, claro! A Angelina Jolie adotar meia dúzia de crianças estrangeiras famintas é louvável. Mas tirar milhares de crianças e adultos da fome extrema em território nacional é assistencialismo.

Fique com seu deus e não esqueça que ele está vendo!

Diário de uma mãe neurótica

26 jul

Não nascemos mulheres, tornamo-nos. Também não se nasce mãe, torna-se mãe. A maior besteira é dizer que toda mulher já nasce mãe, a maternidade deve ser uma escolha, e não uma imposição. Dizer que toda mulher já é mãe por natureza anula o papel do filho na construção da maternidade. Só existe mãe quando existe um filho. Lembro de um sonho que tive durante a gestação, nele paria uma menina, e não Miguel, essa menina rapidamente se tornava adulta, mulher, mãe. Em análise interpretei que ao parir meu filho iria também me parir como mãe. A gestação e o parto foram de uma mãe e um filho. Mãe e filho foram por certo tempo um só, mas separar-se é preciso.

Lemos nos guias de desenvolvimento dos bebês que eles experimentam a angustia da separação, o que não li foi que a mãe também pode sentir essa angústia. Será que meu filho já está preparado para nos separarmos? Será que não estou sendo uma péssima mãe por desejar voltar ao trabalho, afastar-me um pouco da vida doméstica? Atualmente vejo uma onda de mulheres que largam o trabalho para ficar com os filhos, não tenho vontade de fazer isso, será que sou uma mãe egoísta?

Separar-se é preciso, o bebê precisa formar-se sujeito, constituir seu ego, e para isso precisa separar-se da mãe, compreender que ele é outro, alguém único. Mas quando os bebês terão estrutura para suportar a falta da mãe? A falta é a própria estrutura, é preciso doar a falta para o bebê, pois sem falta não há desejo. Minha analista disse que a melhor mãe é a pior, é aquela que sabe faltar. Sigo pensado nisso, e deixando a culpa neurótica um pouco de lado.

Publicação infeliz e o que podemos aprender com isso

31 mar

Hoje encontramos isso no Facebook:

devassaIndignação, horror, denúncia de (mais um) material criminoso da tal da cerveja. O que fazer com isso?

Não manjo quase nada de direito, mas acho que nós, civis, pessoas físicas assim, não podemos fazer denúncias ao Ministério Público, por exemplo. Resolvi consultar uma amiga minha advogada, envolvida com as questões de gênero, e ela indicou dois caminhos: se for alguma coisa local, denunciar para o Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres (Condim), em Florianópolis. Como essa joia não tão rara (gostaríamos que fosse mais) reproduzida acima é de divulgação nacional, ela indicou a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) do Governo Federal.

O legal é que descobri que a SPM tem uma ouvidoria, com vários meios possíveis de se fazer denúncias, além das funções usuais das ouvidorias. Eu lembro de um caso de um site de incentivo ao feminicídio que foi fechado através de uma denúncia da SPM ao Ministério Público, então acho que é um espaço que pode dar resultado, além de ser uma ferramenta institucional que representa uma grande conquista e está aí pra ser usada.

O que vou copiar abaixo não é um modelo rígido nem nada, só um exemplo, pra mostrar que não é complicado denunciar. Sobre essa publicação aí, eu fiz assim:

1. Enviei um email para a ouvidoria da Secretaria de Políticas para Mulheres do Governo Federal: ouvidoria@spm.gov.br 

2. com o título “Publicação que leva o nome da Cerveja Devassa naturalizando crime de estupro”

3. No conteúdo do email escrevi o seguinte:

“Olá!

Considerei a publicação causa de indignação, e pensei que o melhor caminho fosse encaminhar uma denúncia a um órgão competente como a SPM.

Obrigada, Soraia Carolina de Mello.”

4. Além disso anexei a foto da denúncia que vi no Facebook no email.                

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Outras integrantes aqui do blog me pediram pra escrever sobre isso, porque por mais que as denúncias nas redes sociais possam ser importantes, elas nem sempre chegam aos órgãos competentes, além de muitas vezes ajudarem a divulgar as atrocidades, a cultura do estupro, e essas paradas sinistras todas que andam ganhando força por aí. Sem contar que rola uma espécie de ego chauvinista, um orgulhinho de ser tema de debate das feministas. E nós, sinceramente, não precisamos debater mais do mesmo, só queremos esse material recolhido e a empresa com prejuízo pra pensar duas vezes antes de naturalizar o estupro em seus materiais publicitários.

Temos muitas leis terríveis, muitas leis injustas, mas quando se trata de violência contra as mulheres temos respaldo nas instituições para nos defendermos. Este respaldo é uma conquista coletiva dos feminismos em nosso país e é importante fazermos amplo uso dele, tanto para nos protegermos, contra a violência, contra esse tipo de material, quanto para protegermos e legitimarmos esses espaços institucionais de denúncia. Pelo menos foi pensando nisso que eu denunciei.

E aí, você está preparada?

7 fev

Tomar a decisão de engravidar, ter ou não ter um filho sempre leva a essa pergunta, “E aí, será que estamos preparados para sermos pais?”

Mas para mim a pergunta é outra, qual é a preparação possível para uma situação tão radical? Que inevitavelmente vai mudar tudo.

Inventaram curso para gestantes e casais grávidos, fizerem você trocar a fralda e dar banho em um boneco, escreveram livros cheios de fórmulas infalíveis, fizerem filmes sobre parto, sem contatar os intermináveis fóruns e grupos no Facebook.

Então estar preparada significa apropriar-se do conhecimento produzido sobre o tema?

Não apenas isso, você precisa comprar um monte de parafernálias que inventaram, parar de comer um monte de coisas, passar a comer um monte de outras, deixar o quarto do bebê pronto até o 5º mês, fazer o chá de fraldas até o 7º, estar como a mala da maternidade pronta na 34ª semana, fazer um book da barriga no 8º mês, e claro, basicamente ter tudo planejado na sua cabeça, desde o plano de parto até que escola seu filho vai estudar no ensino médio.

Não fiz o curso para gestantes. Nunca troquei uma fralda na vida, muito menos dei banho num bebê. Ganhei vários livros que dou uma foliada, mas não leio com seriedade. Entrei em 2 fóruns mas não me envolvo. Decidi não assistir esses filmes de parto. Comi sushi a gestação toda, sem abusos mas comi. Tentei inúmeras vezes fazer um planejamento mas não consegui, porque como vou planejar uma coisa que não faço a menor ideia de como será? Quero ser surpreendida pela experiência de ser mãe (será que estou virando hippie??? nãooooo!!!!!) e tentar planejar tudo tiraria de mim essa possibilidade. Além do que a chance do planejamento dar todo errado é gigantesca, o que geraria uma enorme frustração, porque eu não tenho experiência e vivência nenhuma no assunto para fazer um bom planejamento.

E todos esses recursos não me preparariam para ser mãe, eles tem uma única finalidade, buscar reduzir a ansiedade gerada pelo enfrentamento do desconhecido. Minha decisão de não fazer todas essas coisas não foi pensada, simplesmente aconteceu, não tive vontade, nada disso me mobilizava. Mas a minha ansiedade foi muito bem trabalhada (na comida). Tomei muito frozzen capuccino depois das sessões de análise, comi vários pastéis depois da drenagem linfática, me deliciei com pães de queijo após fortalecer a lombar com fisioterapia. Achei outras válvulas de escape para a ansiedade, mais gostosas!!! Se eu tivesse habilidades manuais acho que iria tricotar e bordar coisinhas pro bebê, deve ser ótimo para a ansiedade, além de não ganhar peso.

Depois de pensar tanto sobre estar ou não preparada, concluí que a única preparação possível é o desejo, ter vontade de ser mãe, estar com a energia mobilizada para isso. Esse envolvimento é um processo, vai acontecendo durante a gestação, também por isso ela dura nove meses, é um bom tempo para você ir trabalhando com o desejo. Mas antes de engravidar esse desejo deve existir em algum lugar, para com o tempo da gravidez ele ir se consolidando.

E por isso ninguém deveria ser obrigada a ser mãe, se por um acaso da vida uma mulher engravidou ela deve ter garantido o direito sobre seu desejo, e sobre seu corpo. Quando obrigam uma mulher a manter a gestação tiram dela o fundamental para a experiência da maternidade, que é o direito de escolha de ser ou não ser mãe, e em nome de um futuro bebê arrancam dele o direito de ser desejado.

Mais do mesmo, a lógica de culpabilização da vítima em situações de violência

15 dez

Hoje o Fantástico começou com uma reportagem sobre crianças desaparecidas. Em uma espécie de teste de atenção com quem cuidava da criança, um estranho, contratado pelo Fantástico, se aproximava das crianças, puxava conversa e oferecia um pirulito. Algumas crianças conversaram com esse ator e pegaram o doce. A matéria foi inspirada em uma campanha internacional, e no pirulito entregue para as crianças constava a mensagem “basta um segundo para atrair seu filho para longe. Fique de olhos atentos antes que seja tarde demais”.

Estou gestante, e daqui dois meses terei um filho nos braços. Fico pensando o quanto deve ser terrível ter um filho roubado, desaparecido, é uma situação tão violenta que só de pensar fico profundamente angustiada.

Nos primeiros minutos da matéria refletia, “sim, realmente ter um filho exige muita atenção”. Mas conforme a reportagem prosseguia, vieram os relatos de pessoas que tiveram suas crianças roubadas, a dor dessas pessoas era visível. É muito cruel culpá-las por “1 segundo de distração”. É cruel porque é impossível não se distrair por 1 segundo, é humanamente irrealizável, é psicologicamente inviável. Criar uma criança visando o controle absoluto da sua vida irá tornar a pessoa que cuida da mesma doente, e possivelmente a criança também.

É realmente fundamental para quem deseja cuidar de uma criança ter atenção, muita atenção, principalmente nos quesitos de segurança, para evitar acidentes domésticos, ou outras situações que coloquem a criança em risco.

Mas no caso das crianças roubadas, o que causa o desaparecimento delas? 1 segundo de distração de quem está cuidando? Ou o ser humano perturbado que rouba a criança? Observo no caso dessa matéria, e de outras sobre o desaparecimento de crianças, a mesma lógica de culpabilização da vítima que é comum nos casos de violência contra a mulher. O que causa o estupro? Uma saia curta? Estar na rua a noite? Beber demais em uma festa? NÃO!! É o estuprador.

Como mãe-gestante-feminista não consigo parar de ver semelhanças entre essa situação de desaparecimento de crianças e os casos de violência contra a mulher. Como se já não bastasse o sofrimento gerado pelo sumiço, a família que tem uma criança desaparecida ainda sofre uma segunda violência, por ser indiretamente julgada como culpada por uma situação causada por terceiros.

Espero que a abordagem sobre esses temas mude. Espero ver campanhas e matérias que apontem para a única solução possível para evitar o desaparecimento de crianças, a investigação e localização das pessoas que cometem esse crime. Basta um espirro para 1 segundo de distração, e a segurança e integridade do meu filho não pode ser resumida a eu nunca mais poder espirrar.

Prefere parto normal? Só pode ser louca!

13 out

Encontrei uma conhecida na rua com seu filho de 7 meses, conversamos sobre fraldas, alimentação, creche, e outros assuntos que envolvem bebês. Em certo momento ela me perguntou: “E o parto? Vai fazer cesárea?”, respondi “Não, eu quero fazer parto normal”, a contra resposta parecia já estar na ponta da língua, “Louca!”. Fiquei sem resposta, continuei meu caminho e refletindo porque é tão frequente ser julgada estranha por querer parto normal.

Minha escolha pelo parto normal é totalmente o contrário de uma loucura qualquer, é bem racional por sinal. Não quero passar por um procedimento cirúrgico sem haver necessidade clínica. A cesárea é uma operação, e se decido realizá-la devo tomar todos os cuidados que uma cirurgia envolve. Prefiro o parto normal porque não quero ser operada sem precisar, não quero passar por um pós-operatório cheio de cuidados para não pegar uma infecções, para os pontos não inflamarem etc. Para mim insano é querer ser operada sem precisar. Mas como feminista defendo o direito de escolha da mulher sobre seu próprio corpo, e as mulheres que optam pela cesárea devem respeitadas. Mas também como feminista vejo que certos padrões estéticos são exigidos de nós, muitas desejam passar por cirurgias para corresponder e se enquadrar a esses padrões. Só a mulher tem o direito de decidir o que fazer com o seu corpo, mas devemos refletir que forças e discursos tensionam para que tantas mulheres desde cedo já desejem peitos, bundas, coxas e cinturas diferentes das que possuem. Esses padrões estéticos vigentes também estimulam a preferência pela cesárea, quantas vezes ouvimos outras mulheres falando que não querem passar por um parto normal pois isso iria tornar sua vagina defeituosa, indesejável? De fato muitas mulheres são mutiladas durante o parto normal, em função de um mito que todo parto exige a episotomia, porém diversos estudos comprovam que esse é um procedimento ultrapassado e que não precisa ser utilizado em todos os partos normais. A mutilação não é uma consequência do parto normal, e sim uma ação de médicos mal preparados que realizam procedimentos desnecessários, as coisas estão invertidas, médicos ruins causam mutilação e não partos normais.

A médica Melania Amorim também defende o direito de escolha das mulheres, mas argumenta que essa escolha precisa ser esclarecida. A gestante deve saber todas as consequências e riscos que uma cesárea implica, é compromisso ético dos médicos oferecer essas informações. Mas o que acontece é que muitas vezes os médicos indicam e induzem as mulheres a preferirem cesáreas pensado no que é melhor apenas para eles, e não para as gestantes. No blog da Melania ela traz uma lista com os casos onde a cesárea é recomendada, e outra lista com motivos falsos para operar.

Não tenho expectativas que meu parto seja um momento mágico, pelo contrário, acho que será um momento tenso. Não quero que filmem ou fotografem minhas entranhas, não acho que é uma cena que meu filho precisará ver para saber como ele foi amado e desejado. Particularmente considero essa enxurrada de imagens de parto um pouco desnecessária, na minha cabeça tão desnecessário quanto seria registrar para mostrar para a criança o momento que ela foi concebida, apesar de considerar que esse tipo de imagem pode ser mais interessante esteticamente. Parece que as pessoas estão perdendo a dimensão do que faz parte da intimidade, mas esse é outro assunto.

Compartilhando experiências com um comportamento violento – de que forma eu deveria fazer isso?

19 ago

Traduzi este texto já faz algum tempo, mas por alguma razão não publiquei … Recentemente me lembrei dele por dois motivos. O primeiro é muito semelhante ao que me levou a ele a primeira vez: novamente recebo notícias de que um companheiro agrediu sua namorada, que é também companheira de luta. Infelizmente não foi a única notícia dessas nos últimos meses … O texto que segue é um relato de uma militante do Students for Democratic Society (uma organização de estudantes dos EUA) sobre uma violência que sofreu de um companheiro da SDS. Talvez seja uma das violências mais temidas: a violência sexual, o estupro. Ela narra com uma sobriedade incrível todo o processo pelo qual passou para poder começar a lidar com o que aconteceu. “Levaram-me duas semanas para dizer a ele que o que havia feito me deixou desconfortável; um mês para parar de me culpar; seis meses para conceber que aquilo havia sido um assédio sexual”, ela escreve… Não, não deve ser fácil ser violentada por alguém tão próximo, logo por alguém com quem acreditamos compartilhar sonhos de mudar o mundo.

Ela aponta questões difíceis, como a falta de espaço em seu grupo para que ela ou outras pessoas que haviam sofrido com o comportamento violento deste companheiro pudessem conversar e problematizar o que havia acontecido. As pessoas com quem compartilhou a história se sentiram desconfortáveis e calaram-se. Enquanto isso era ela quem se retirava das reuniões e atividades do grupo. Queria evitar encontrar seu agressor, e ele permanecia lá. Durante este processo, ela relata como uma reunião de emergência somente com as mulheres do grupo, convocada por uma companheira a quem ela havia contado o ocorrido, foi fundamental para que ela se sentisse fortalecida e com coragem para levar a questão para o grupo como um todo. O que leva ao segundo motivo que me fez lembrar deste texto, uma sequências de textos publicados recentemente pelo Passa Palavra (PP) em que eles criticam a existência de espaços exclusivamente femininos dentro de coletivos e movimentos sociais, o que eles chamam de feminismo excludente.

O que me chamou atenção, em especial no penúltimo texto da sequência, é a sua afirmação de que “boa parte da movimentação esquerdista em torno do feminismo” parte das premissas deste feminismo excludente; e a sua constatação de que “as denúncias acerca da violência machista recaem sobre os rapazes da esquerda (habitualmente de fraca envergadura física e flacidez muscular) e não sobre seguranças de boate ou membros de outras profissões hercúleas, mas exclusivamente sobre aqueles que entram em pânico sempre que são acusados de politicamente incorretos”. Daí concluem que por trás destas denúncias há uma pauta oculta neste feminismo. Será?

De que denúncias estarão falando? Não quiseram explicitar, o que me intrigou, uma vez que o PP não costuma ter medo de dar nome aos bois. Nem mesmo dos mais graúdos como o MST, ou o famigerado Fora do Eixo, quando eles foram os primeiros a denunciar a intenções mercantis do grupo na construção da marcha da liberdade em São Paulo. Como não sei do que eles estão falando, falo do que sei e do que se tornou público: o recente afastamento de um membro da organização anarquista Bandeira Negra que agrediu sua companheira e a expulsão do MPL-Curitiba do movimento nacional do Passe Livre, por razão deste não ter se posicionado em relação à denúncia de agressão cometida por um dos seus membros contra sua namorada. Embora eu fique triste em saber que casos como estes ocorram em espaços que me são tão próximos, fico satisfeita em ver que essas meninas encontraram força e espaço para fazerem suas denúncias e que, da melhor forma que puderam, os movimentos deram uma resposta a isso.

Lembro da primeira vez que um caso de violência se tornou público no Movimento Passe Livre. Era 2008 ou 2009, e o caso havia acontecido em São Paulo. Um pouco antes disso algumas militantes de Brasília haviam criado uma lista informal de e-mails: o MPL Mulheres. Nós precisávamos conversar e quando tudo veio à tona é claro que virou tema na lista. No começo foi confuso, algumas militantes questionavam uma lista só para mulheres, outras já queriam dali partir para algum posicionamento enquanto grupo de mulheres. Lembro que de maneira geral as militantes de Floripa defendiam um espaço de conversa e trocas de experiência, e que as propostas surgidas ali fossem levadas para os coletivos locais. Mas logo a lista mostrou sua importância, mais histórias de agressões foram surgindo do subterrâneo do MPL e encontravam ali um espaço para serem ouvidas e contadas.

O MPL Mulheres nunca virou comissão ou mesmo algo oficial dentro do movimento, como é comum existir em partidos políticos, na Via Campesina entre outros movimentos. E o que não vejo como necessariamente ruim. Nós também nunca usamos o espaço para decidirmos coisas pelo MPL como um todo. Acho que sempre funcionou mais como uma rede de solidariedade, quiçá de consulta entre companheiras de movimento. Mas sei lá, vai ver é porque não nos enquadramos nessa tendência excludente e maioritária na movimentação esquerdista em torno do feminismo. Por isso gostaria muito que o PP tivesse sido mais específico nesta análise. Também achei estranho eles não terem mencionados esses casos tão paradigmáticos em termos de denúncias de violência contra mulher dentro dos movimentos sociais autônomos.

São textos com muitos problemas estes do Passa Palavra. Deixaram a mim e muitas companheiras próximas desapontadas com o coletivo. O site do PP se tornou uma referência importante em debates sobre movimentos sociais e lutas anti-capitalistas. Eu gostava de acompanhar. No entanto, não é de hoje que considero que, enquanto coletivo, o Passa Palavra pouco tem contribuído para a reflexão acerca da luta das mulheres e mesmo das questões de gênero de um modo geral. Embora tenha publicado textos muito interessantes de indivíduos. O que não é um grande problema, afinal todo movimento e coletivo tem seus limites. E acredito que o PP fez alguma contribuição em apontar a necessidade de autocrítica dentro da esquerda. Mas é preciso dizer que seus textos sobre o feminismo excludente mais contribuíram para reforçar a desconfiança que grupos feministas têm em relação a uma certa esquerda que resiste em incorporar as pautas específicas das mulheres (ou dos negros, ou dos gays) sem subjugá-las às questões de classe.

Esta hierarquização permeia o texto PP. Ela fica clara quando comparamos o cuidado e rigor teórico despendido pelo coletivo em textos que dizem respeito às questões de classe, com desleixo e as vezes até deboche em relação a teoria feminista. Não fazem referências, nem discutem seriamente, mas podem afirmar que: “ Incapaz de justificar os seus pressupostos com a vasta historiografia existente, o feminismo recorre como autoridade única precisamente às historiadoras feministas, encerrando-se assim num círculo vicioso”.

Na minha opinião citar Solanas como referência para um feminismo, se não for má-fé ou pura provocação, é no mínimo uma ignorância atroz. A primeira vez que eu ouvi falar desta grande feminista foi num texto da blogueira Lola, “Pra quem não gosta, todo feminismo é radical”, que por sua vez conheceu a Solanas através do filme Um Tiro para Andy Warhol, e não, pasmem, numa formação feminista. Ela escreve: Os mascus, por exemplo, que têm como missão declarada destruir o feminismo, que tanto empobreceu as mulheres (eles gostariam de voltar à década de 1950), só conhecem uma feminista: Valerie Solanas”. Mascu para quem não sabe é um apelido divertido que ela colocou em homens machistas que se sentem oprimidos pelas conquistas sociais feministas e do movimento gay. Recomendo os textos da Lola que linkei acima, pois são muito divertidos. Tanto que num primeiro momento eu ri com essa lembrança, depois fiquei mal em ter, por um momento, aproximado pessoas que eu conheço no coletivo do PP à figura escabrosa do mascu.

Mas enfim, para resumir e finalizar, já que o PP não contribuiu muito no debate e reflexão sobre feminismo na esquerda (ou feminismo de esquerda, o feminismo canhoto como nós gostamos mais), resolvi finalmente postar este texto, que é tão sincero e sensível às dificuldades enfrentadas quando o assunto é violência contra mulher dentro dos movimentos sociais. Acredito que esta seja uma questão muito delicada, sem saída fácil, e que a maioria de nós gostaria de resolver sem recorrer às instituições punitivas que conhecemos. Porém, nesta busca não podemos punir a vítima. Culpabilização da vítima é uma dinâmica do machismo conhecida demais para cairmos neste erro. É preciso reconhecer que o afastamento de agressores do coletivo às vezes é a melhor saída para que ela possa permanecer e se sentir bem no movimento. É preciso reconhecer e fomentar espaços que permitam que se fale sobre as opressões reproduzidas dentro do coletivo, sejam elas em relação a cor, orientação sexual, gênero ou qualquer outra. Se em algum momento espaços restritos a determinado grupo é importante para criar essas condições, como acontece no relato que segue, isso precisa ser respeitado e não visto com desconfiança. Espero que gostem do texto e que ele nos ajude a fazer uma discussão mais saudável sobre o tema. Afinal, esta semana em São Paulo acontece o II Seminário Há Machismo na Esquerda? e eu pretendo participar.

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Compartilhando experiências com um comportamento violento – de que forma eu deveria fazer isso?

Já faz um ano que venho sofrendo com a pergunta: como compartilhar de um modo produtivo e sincero as minhas experiências e as experiências do meu coletivo em relação ao comportamento agressivo por parte de um militante?

Desde o dia em que aconteceu eu fiquei sem saber para quem contar, o que dizer ou como falar sobre aquilo. Tive dificuldade em articular para mim mesma o que havia acontecido. Levaram-me duas semanas para dizer a ele que o que havia feito me deixou desconfortável; um mês para parar de me culpar; seis meses para conceber que aquilo havia sido um assédio sexual.

Conversei muito com as pessoas enquanto passava por esse processo. Primeiro contei ao meu companheiro, procurando, sem sucesso, palavras para dar nome a minha experiência. Tudo o que eu conseguia fazer era descrever o que aconteceu: “Ele me serviu três taças de vinho, no sofá colocou suas pernas sobre mim, começou a acariciar minha mão…”

Quanto mais o tempo passava, mais nervosa eu ia ficando. Frequentemente ia embora das reuniões e evitava o agressor. Senti que precisava contar minha história para poder justificar o meu comportamento para os outros membros do grupo. Quando eu me aproximava de alguém individualmente para falar, eu contava com sua sensibilidade e com minhas descrições frias. Quatro meses e a única maneira que eu conseguia dividir minhas experiências era descrevendo de forma furtiva e amargurada o que acontecera para alguns amigos. Às vezes éramos os últimos a ir embora de uma festa, às vezes era um amigo me emprestando um livro. A única forma de aliviar minha raiva e frustração acontecia nessas pequenas oportunidades de compartilhar.

Ao contar para outras pessoas, ficou claro para mim que me faltava um vocabulário. Na época eu não encontrava palavras para falar do que estava acontecendo, e aqueles que me escutavam também não as tinham. As pessoas para quem eu contava ficaram confusas e magoadas, o que eles expressaram com silencio. Nosso grupo não tinha estrutura para compreender e confrontar um comportamento abusivo. Não havia espaço para minha experiência na linguagem do nosso grupo. Não havia espaço para nenhuma mulher ou homem que havia sofrido com outros comportamentos violentos desta pessoa. Enquanto indivíduos e enquanto organização ficamos paralisados, efetivamente silenciados por essa pessoa e pela falta de vocabulário e estrutura para entender nossas experiências.

Finalmente, uma mulher incrivelmente forte chamou uma reunião de emergência das mulheres do coletivo. Pela primeira vez nós compartilhamos nossas experiências umas com as outras sem precisar falar pelas costas, mas enquanto parte de um grupo. Juntas criamos o vocabulário que nos faltava para nomear nossas experiências enquanto o que são: agressão. Agressão física, emocional e sexual. Decidimos que enquanto grupo de doze mulheres iríamos exigir que o agressor deixasse a organização, ou a deixaríamos nós, para tornar o ambiente mais seguro para homens e mulheres do coletivo.

A partir daquele momento, a pergunta na minha cabeça não era mais: “como eu compartilho minha experiência com outras pessoas?”, mas: “como nós compartilhamos essas histórias com o grupo inteiro?”. Eu não sabia como meus amigos homens reagiriam a nossas histórias ou a nossa decisão. Como já disse antes, minha experiência em contar para os outros foi bem negativa. O silêncio dos meus amigos havia corroído boa parte da minha confiança no grupo, e eu estava com medo particularmente da sua reação em relação a nossa decisão de afastar essa pessoa. Tinha medo de que eles minimizassem nossas histórias ou que eles suspeitassem da nossa decisão. Nosso grupo já havia se divido de mutias formas por causa do comportamento do agressor. Parte de mim temia que as pessoas vissem a decisão como mais desagregadora, e não conciliadora.

Contar minha história para um grupo de vinte e duas pessoas foi uma experiência de mexer com os nervos, e muito diferente de falar para um grupo de mulheres ou a um amigo/a no final da noite. Foi difícil, mas me senti amparada pelo grupo de onze mulheres sentadas ao meu lado. A resposta da organização foi incrivelmente positiva, as pessoas corresponderam, foram solidárias e sensíveis. Saí da reunião com a confiança no meu coletivo renovada. Nunca havia me sentido tão inspirada pela ação coletiva, agindo como mulher, num grupo de mulheres para efetivamente fazer algo em relação ao patriarcado.

Entre as barreiras que dificultavam o compartilhar da minha história, havia uma particularmente escorregadia com a qual sofro até hoje. Eu não queria arruinar essa pessoa, e eu ainda não quero arruinar essa pessoa. Eu sabia que de muitas formas eu estaria ajudando a tomar uma decisão que poderia potencialmente isolar a prejudicar socialmente uma pessoa que costumava ser meu amigo. Uma pessoa de quem eu guardava mágoa, mas não odiava. Eu acredito em justiça retroativa, mas e se inadvertidamente o processo de justiça retroativa se transforma em punitiva? Essa pessoa fez muita merda. Falar disso e tornar isso conhecido deve ter sido uma experiência bem ruim para ele. As pessoas podem reagir se afastando dele, e ele não fará mais parte da organização. Essas coisas podem ser interpretadas por ele como punitivas, mas foram consequências de uma decisão tomada visando a segurança das mulheres e da organização. Eu não sei como reconciliar isso.

Na medida em que fui me envolvendo com o movimento nacional, tenho recorridamente me deparado com o tema. Eu deveria compartilhar informação que possivelmente pode fazer mais mal a essa pessoa? Eu não quero estragar as futuras relações dela, mas eu definitivamente não quero ser silenciada. Outro dia fiquei irritada com um comentário sobre assédio sexual dentro do coletivo. Não sabia se eu deveria falar para ela porque fiquei irritada, e pensei que se eu tivesse contado minha história antes de tudo, provavelmente ela não teria feito esse comentário. Novamente me senti insegura sobre como falar sobre minhas experiências de uma forma útil e justa.

Eu acho que o SDS (Estudantes por uma Sociedade Democrática) precisa se esforçar mais para criar um coletivo no qual histórias de assédio sexual e violência interpessoal possam ser compartilhadas. … eu ouvi muito no encontro nacional, acho que precisamos construir um comunidade de confiança para que de fato tenhamos uma espaço para conversar. Acho que precismos de um vocabulário para falar dessas experiências. E finalmente, eu adoraria que conversássemos sobre o ato de compartilharmos essas experiências. Espero que esse texto abra algum espaço para conversarmos sobre esse processo de sermos silenciadas/os e conseguirmos falar, sobre como proceder para que de fato nossas vozes sejam ouvidas e como criar um ambiente seguro e construtivo para compartilharmos nossas experiências.

Original em: http://sdswomynscaucus.wordpress.com/2009/07/23/sharing-experiences-of-abusive-behavior-how-the-hell-should-i-do-it/

Em tempo:

Caso alguém tenha ficado curiosa/o sobre o texto do Passa Palavra : http://passapalavra.info/2013/07/81401