Traduzi este texto já faz algum tempo, mas por alguma razão não publiquei … Recentemente me lembrei dele por dois motivos. O primeiro é muito semelhante ao que me levou a ele a primeira vez: novamente recebo notícias de que um companheiro agrediu sua namorada, que é também companheira de luta. Infelizmente não foi a única notícia dessas nos últimos meses … O texto que segue é um relato de uma militante do Students for Democratic Society (uma organização de estudantes dos EUA) sobre uma violência que sofreu de um companheiro da SDS. Talvez seja uma das violências mais temidas: a violência sexual, o estupro. Ela narra com uma sobriedade incrível todo o processo pelo qual passou para poder começar a lidar com o que aconteceu. “Levaram-me duas semanas para dizer a ele que o que havia feito me deixou desconfortável; um mês para parar de me culpar; seis meses para conceber que aquilo havia sido um assédio sexual”, ela escreve… Não, não deve ser fácil ser violentada por alguém tão próximo, logo por alguém com quem acreditamos compartilhar sonhos de mudar o mundo.
Ela aponta questões difíceis, como a falta de espaço em seu grupo para que ela ou outras pessoas que haviam sofrido com o comportamento violento deste companheiro pudessem conversar e problematizar o que havia acontecido. As pessoas com quem compartilhou a história se sentiram desconfortáveis e calaram-se. Enquanto isso era ela quem se retirava das reuniões e atividades do grupo. Queria evitar encontrar seu agressor, e ele permanecia lá. Durante este processo, ela relata como uma reunião de emergência somente com as mulheres do grupo, convocada por uma companheira a quem ela havia contado o ocorrido, foi fundamental para que ela se sentisse fortalecida e com coragem para levar a questão para o grupo como um todo. O que leva ao segundo motivo que me fez lembrar deste texto, uma sequências de textos publicados recentemente pelo Passa Palavra (PP) em que eles criticam a existência de espaços exclusivamente femininos dentro de coletivos e movimentos sociais, o que eles chamam de feminismo excludente.
O que me chamou atenção, em especial no penúltimo texto da sequência, é a sua afirmação de que “boa parte da movimentação esquerdista em torno do feminismo” parte das premissas deste feminismo excludente; e a sua constatação de que “as denúncias acerca da violência machista recaem sobre os rapazes da esquerda (habitualmente de fraca envergadura física e flacidez muscular) e não sobre seguranças de boate ou membros de outras profissões hercúleas, mas exclusivamente sobre aqueles que entram em pânico sempre que são acusados de politicamente incorretos”. Daí concluem que por trás destas denúncias há uma pauta oculta neste feminismo. Será?
De que denúncias estarão falando? Não quiseram explicitar, o que me intrigou, uma vez que o PP não costuma ter medo de dar nome aos bois. Nem mesmo dos mais graúdos como o MST, ou o famigerado Fora do Eixo, quando eles foram os primeiros a denunciar a intenções mercantis do grupo na construção da marcha da liberdade em São Paulo. Como não sei do que eles estão falando, falo do que sei e do que se tornou público: o recente afastamento de um membro da organização anarquista Bandeira Negra que agrediu sua companheira e a expulsão do MPL-Curitiba do movimento nacional do Passe Livre, por razão deste não ter se posicionado em relação à denúncia de agressão cometida por um dos seus membros contra sua namorada. Embora eu fique triste em saber que casos como estes ocorram em espaços que me são tão próximos, fico satisfeita em ver que essas meninas encontraram força e espaço para fazerem suas denúncias e que, da melhor forma que puderam, os movimentos deram uma resposta a isso.
Lembro da primeira vez que um caso de violência se tornou público no Movimento Passe Livre. Era 2008 ou 2009, e o caso havia acontecido em São Paulo. Um pouco antes disso algumas militantes de Brasília haviam criado uma lista informal de e-mails: o MPL Mulheres. Nós precisávamos conversar e quando tudo veio à tona é claro que virou tema na lista. No começo foi confuso, algumas militantes questionavam uma lista só para mulheres, outras já queriam dali partir para algum posicionamento enquanto grupo de mulheres. Lembro que de maneira geral as militantes de Floripa defendiam um espaço de conversa e trocas de experiência, e que as propostas surgidas ali fossem levadas para os coletivos locais. Mas logo a lista mostrou sua importância, mais histórias de agressões foram surgindo do subterrâneo do MPL e encontravam ali um espaço para serem ouvidas e contadas.
O MPL Mulheres nunca virou comissão ou mesmo algo oficial dentro do movimento, como é comum existir em partidos políticos, na Via Campesina entre outros movimentos. E o que não vejo como necessariamente ruim. Nós também nunca usamos o espaço para decidirmos coisas pelo MPL como um todo. Acho que sempre funcionou mais como uma rede de solidariedade, quiçá de consulta entre companheiras de movimento. Mas sei lá, vai ver é porque não nos enquadramos nessa tendência excludente e maioritária na movimentação esquerdista em torno do feminismo. Por isso gostaria muito que o PP tivesse sido mais específico nesta análise. Também achei estranho eles não terem mencionados esses casos tão paradigmáticos em termos de denúncias de violência contra mulher dentro dos movimentos sociais autônomos.
São textos com muitos problemas estes do Passa Palavra. Deixaram a mim e muitas companheiras próximas desapontadas com o coletivo. O site do PP se tornou uma referência importante em debates sobre movimentos sociais e lutas anti-capitalistas. Eu gostava de acompanhar. No entanto, não é de hoje que considero que, enquanto coletivo, o Passa Palavra pouco tem contribuído para a reflexão acerca da luta das mulheres e mesmo das questões de gênero de um modo geral. Embora tenha publicado textos muito interessantes de indivíduos. O que não é um grande problema, afinal todo movimento e coletivo tem seus limites. E acredito que o PP fez alguma contribuição em apontar a necessidade de autocrítica dentro da esquerda. Mas é preciso dizer que seus textos sobre o feminismo excludente mais contribuíram para reforçar a desconfiança que grupos feministas têm em relação a uma certa esquerda que resiste em incorporar as pautas específicas das mulheres (ou dos negros, ou dos gays) sem subjugá-las às questões de classe.
Esta hierarquização permeia o texto PP. Ela fica clara quando comparamos o cuidado e rigor teórico despendido pelo coletivo em textos que dizem respeito às questões de classe, com desleixo e as vezes até deboche em relação a teoria feminista. Não fazem referências, nem discutem seriamente, mas podem afirmar que: “ Incapaz de justificar os seus pressupostos com a vasta historiografia existente, o feminismo recorre como autoridade única precisamente às historiadoras feministas, encerrando-se assim num círculo vicioso”.
Na minha opinião citar Solanas como referência para um feminismo, se não for má-fé ou pura provocação, é no mínimo uma ignorância atroz. A primeira vez que eu ouvi falar desta grande feminista foi num texto da blogueira Lola, “Pra quem não gosta, todo feminismo é radical”, que por sua vez conheceu a Solanas através do filme Um Tiro para Andy Warhol, e não, pasmem, numa formação feminista. Ela escreve: “Os mascus, por exemplo, que têm como missão declarada destruir o feminismo, que tanto empobreceu as mulheres (eles gostariam de voltar à década de 1950), só conhecem uma feminista: Valerie Solanas”. Mascu para quem não sabe é um apelido divertido que ela colocou em homens machistas que se sentem oprimidos pelas conquistas sociais feministas e do movimento gay. Recomendo os textos da Lola que linkei acima, pois são muito divertidos. Tanto que num primeiro momento eu ri com essa lembrança, depois fiquei mal em ter, por um momento, aproximado pessoas que eu conheço no coletivo do PP à figura escabrosa do mascu.
Mas enfim, para resumir e finalizar, já que o PP não contribuiu muito no debate e reflexão sobre feminismo na esquerda (ou feminismo de esquerda, o feminismo canhoto como nós gostamos mais), resolvi finalmente postar este texto, que é tão sincero e sensível às dificuldades enfrentadas quando o assunto é violência contra mulher dentro dos movimentos sociais. Acredito que esta seja uma questão muito delicada, sem saída fácil, e que a maioria de nós gostaria de resolver sem recorrer às instituições punitivas que conhecemos. Porém, nesta busca não podemos punir a vítima. Culpabilização da vítima é uma dinâmica do machismo conhecida demais para cairmos neste erro. É preciso reconhecer que o afastamento de agressores do coletivo às vezes é a melhor saída para que ela possa permanecer e se sentir bem no movimento. É preciso reconhecer e fomentar espaços que permitam que se fale sobre as opressões reproduzidas dentro do coletivo, sejam elas em relação a cor, orientação sexual, gênero ou qualquer outra. Se em algum momento espaços restritos a determinado grupo é importante para criar essas condições, como acontece no relato que segue, isso precisa ser respeitado e não visto com desconfiança. Espero que gostem do texto e que ele nos ajude a fazer uma discussão mais saudável sobre o tema. Afinal, esta semana em São Paulo acontece o II Seminário Há Machismo na Esquerda? e eu pretendo participar.
Compartilhando experiências com um comportamento violento – de que forma eu deveria fazer isso?
Já faz um ano que venho sofrendo com a pergunta: como compartilhar de um modo produtivo e sincero as minhas experiências e as experiências do meu coletivo em relação ao comportamento agressivo por parte de um militante?
Desde o dia em que aconteceu eu fiquei sem saber para quem contar, o que dizer ou como falar sobre aquilo. Tive dificuldade em articular para mim mesma o que havia acontecido. Levaram-me duas semanas para dizer a ele que o que havia feito me deixou desconfortável; um mês para parar de me culpar; seis meses para conceber que aquilo havia sido um assédio sexual.
Conversei muito com as pessoas enquanto passava por esse processo. Primeiro contei ao meu companheiro, procurando, sem sucesso, palavras para dar nome a minha experiência. Tudo o que eu conseguia fazer era descrever o que aconteceu: “Ele me serviu três taças de vinho, no sofá colocou suas pernas sobre mim, começou a acariciar minha mão…”
Quanto mais o tempo passava, mais nervosa eu ia ficando. Frequentemente ia embora das reuniões e evitava o agressor. Senti que precisava contar minha história para poder justificar o meu comportamento para os outros membros do grupo. Quando eu me aproximava de alguém individualmente para falar, eu contava com sua sensibilidade e com minhas descrições frias. Quatro meses e a única maneira que eu conseguia dividir minhas experiências era descrevendo de forma furtiva e amargurada o que acontecera para alguns amigos. Às vezes éramos os últimos a ir embora de uma festa, às vezes era um amigo me emprestando um livro. A única forma de aliviar minha raiva e frustração acontecia nessas pequenas oportunidades de compartilhar.
Ao contar para outras pessoas, ficou claro para mim que me faltava um vocabulário. Na época eu não encontrava palavras para falar do que estava acontecendo, e aqueles que me escutavam também não as tinham. As pessoas para quem eu contava ficaram confusas e magoadas, o que eles expressaram com silencio. Nosso grupo não tinha estrutura para compreender e confrontar um comportamento abusivo. Não havia espaço para minha experiência na linguagem do nosso grupo. Não havia espaço para nenhuma mulher ou homem que havia sofrido com outros comportamentos violentos desta pessoa. Enquanto indivíduos e enquanto organização ficamos paralisados, efetivamente silenciados por essa pessoa e pela falta de vocabulário e estrutura para entender nossas experiências.
Finalmente, uma mulher incrivelmente forte chamou uma reunião de emergência das mulheres do coletivo. Pela primeira vez nós compartilhamos nossas experiências umas com as outras sem precisar falar pelas costas, mas enquanto parte de um grupo. Juntas criamos o vocabulário que nos faltava para nomear nossas experiências enquanto o que são: agressão. Agressão física, emocional e sexual. Decidimos que enquanto grupo de doze mulheres iríamos exigir que o agressor deixasse a organização, ou a deixaríamos nós, para tornar o ambiente mais seguro para homens e mulheres do coletivo.
A partir daquele momento, a pergunta na minha cabeça não era mais: “como eu compartilho minha experiência com outras pessoas?”, mas: “como nós compartilhamos essas histórias com o grupo inteiro?”. Eu não sabia como meus amigos homens reagiriam a nossas histórias ou a nossa decisão. Como já disse antes, minha experiência em contar para os outros foi bem negativa. O silêncio dos meus amigos havia corroído boa parte da minha confiança no grupo, e eu estava com medo particularmente da sua reação em relação a nossa decisão de afastar essa pessoa. Tinha medo de que eles minimizassem nossas histórias ou que eles suspeitassem da nossa decisão. Nosso grupo já havia se divido de mutias formas por causa do comportamento do agressor. Parte de mim temia que as pessoas vissem a decisão como mais desagregadora, e não conciliadora.
Contar minha história para um grupo de vinte e duas pessoas foi uma experiência de mexer com os nervos, e muito diferente de falar para um grupo de mulheres ou a um amigo/a no final da noite. Foi difícil, mas me senti amparada pelo grupo de onze mulheres sentadas ao meu lado. A resposta da organização foi incrivelmente positiva, as pessoas corresponderam, foram solidárias e sensíveis. Saí da reunião com a confiança no meu coletivo renovada. Nunca havia me sentido tão inspirada pela ação coletiva, agindo como mulher, num grupo de mulheres para efetivamente fazer algo em relação ao patriarcado.
Entre as barreiras que dificultavam o compartilhar da minha história, havia uma particularmente escorregadia com a qual sofro até hoje. Eu não queria arruinar essa pessoa, e eu ainda não quero arruinar essa pessoa. Eu sabia que de muitas formas eu estaria ajudando a tomar uma decisão que poderia potencialmente isolar a prejudicar socialmente uma pessoa que costumava ser meu amigo. Uma pessoa de quem eu guardava mágoa, mas não odiava. Eu acredito em justiça retroativa, mas e se inadvertidamente o processo de justiça retroativa se transforma em punitiva? Essa pessoa fez muita merda. Falar disso e tornar isso conhecido deve ter sido uma experiência bem ruim para ele. As pessoas podem reagir se afastando dele, e ele não fará mais parte da organização. Essas coisas podem ser interpretadas por ele como punitivas, mas foram consequências de uma decisão tomada visando a segurança das mulheres e da organização. Eu não sei como reconciliar isso.
Na medida em que fui me envolvendo com o movimento nacional, tenho recorridamente me deparado com o tema. Eu deveria compartilhar informação que possivelmente pode fazer mais mal a essa pessoa? Eu não quero estragar as futuras relações dela, mas eu definitivamente não quero ser silenciada. Outro dia fiquei irritada com um comentário sobre assédio sexual dentro do coletivo. Não sabia se eu deveria falar para ela porque fiquei irritada, e pensei que se eu tivesse contado minha história antes de tudo, provavelmente ela não teria feito esse comentário. Novamente me senti insegura sobre como falar sobre minhas experiências de uma forma útil e justa.
Eu acho que o SDS (Estudantes por uma Sociedade Democrática) precisa se esforçar mais para criar um coletivo no qual histórias de assédio sexual e violência interpessoal possam ser compartilhadas. … eu ouvi muito no encontro nacional, acho que precisamos construir um comunidade de confiança para que de fato tenhamos uma espaço para conversar. Acho que precismos de um vocabulário para falar dessas experiências. E finalmente, eu adoraria que conversássemos sobre o ato de compartilharmos essas experiências. Espero que esse texto abra algum espaço para conversarmos sobre esse processo de sermos silenciadas/os e conseguirmos falar, sobre como proceder para que de fato nossas vozes sejam ouvidas e como criar um ambiente seguro e construtivo para compartilharmos nossas experiências.
Original em: http://sdswomynscaucus.wordpress.com/2009/07/23/sharing-experiences-of-abusive-behavior-how-the-hell-should-i-do-it/
Em tempo:
Caso alguém tenha ficado curiosa/o sobre o texto do Passa Palavra : http://passapalavra.info/2013/07/81401
Tags:feminismo de esquerda, violência contra mulher